30/11/2007

cantiga da pena à morte

© Jessica Winder

eu tive uma pena que não fiz voar

e chorei um rio que não foi regar

abri uma fonte não deu de beber

fui amada às vezes sem agradecer

tive solidão não escrevi poesia

soltei gargalhadas sem ter alegria

cruzei as palavras sem nada dizer

lavrei orações sem acreditar

olhei o teu rosto sem o afagar

(só cravei as unhas nas palmas da mão

quem não é amante tem de ser irmão)

confesso, não sei sequer se vivi

de tanto que queria e não consegui



eu tenho uma pena branca de luar

replecta de gotas prontas a regar

nem rego nem voo, fico a contemplar

dou a pena à morte, está quase a chegar

ela há-de saber a quem a passar



é tão velha a morte, bem de antes dos vivos

talvez nela encontre mais cinco sentidos...

28/11/2007

Intervalo

at luminous-landscape.com

Nuvem Passageira

Eu sou só
E estou só
Só serei seu se for só
Eu sou só

Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai

Não adianta escrever meu nome numa pedra
Pois essa pedra em pó vai se transformar
Você nao vê que a vida corre contra o tempo
Sou um castelo de areia na beira do mar


lyrics by Karmak


"Estamos todos sós por baixo da nossa pele"

25/11/2007

só porque olhei...

é o tempo de olhar.

de olhar para ver. para o lado para baixo. se não olho para baixo tropeço nas pedras abandonadas na cidade. esta cidade onde me exilaram.

olho para o lado vez por outra. gente. gente cansada. desalegre. desfeita de cansaço e fim de esperança.

o filho desejado por haver. o dinheiro não estica e há as prestações do carro, da casa, da viagem que se fez pelo direito a ser primeiro mundo. o banco a oferecer facilidades. tantas. mas o juro subiu. a mulher ficou sem emprego. agora... agora é Natal. quase. lá vem a obrigação de festejar.

o Natal. a minha hora de temperar a comida com mais umas gotas de angústia e dar doces à cadela e partilhar com ela a ceia melhorada por hábito. festejar? mas o quê se a alma se me escapa ao olhar para o chão onde jazem os meus mortos. os que tive a cobardia de não acompanhar.

mas de que é que eu falava afinal? das gentes e da festa por vir. dos presentes pagos a prestações comprados nos vendedores de ouro no emprego ou a cartão de crédito, a obrigar ao sufoco por um ano mais.

depois é recomeçar a dieta de sopa e queijo fresco ao almoço e fazer uma massa para o jantar com carne picada para a família...

- achas que a tua mãe gostou do presente?

- claro, querida, adorou!

do outro lado:

- isto foi comprado nos chineses. aposto que para a mãe da outra foi ao centro comercial. e andei eu a gastar uma fortuna em presentes para eles.

presentes estão. mas como? no natal.

Cristo, explica-me tu o que é natal!

ao pensar nisto elevei o olhar. caí. tenho um joelho numa desgraça só. fractura não houve. bem, é porque a maça óssea não está má. poupei a fortuna de uma radiografia.

milagre de natal.

19/11/2007

chuva no deserto

thirsty by Dario Menasce


a chuva chega a aliviar o caudal seco do rio dos meus nervos

há uma solidão de pedra nas gentes em volta. o cinzento traz isso

a quem ama a cidade e o cimento-cerco onde me perco como num deserto

respiro lento. bebo a humidade como as árvores empoeiradas de obras

gordurosas de óleos sufocadas de gases poluentes. respiro.


- lembro-te

pouco nos importava que chovesse e desabasse o mundo sobre nós

tanto se nos dava que fosse o sol escaldante nos areais sem norte

criávamos oásis ou abrigos com a imaginação

dadas que estivessem as mãos nada nos impedia de seguir rastos de água


- lembro-te

meu rio de sangue-vida. meu bordão de viagem. meu senhor e meu pajem

lembro-te e volto ao nosso rio sem rumo ou sequer margem

entro nele e mergulho sem saber quanto futuro ainda há por vir

só sei que estarás comigo até ao fim mais do que eu pude estar

morrerei a sentir e a amar. farás comigo a última viagem


- lembro-nos e sorrio


no corredor alguém diz em voz alta que faz frio – eu não o sinto...

viverei ainda no mesmo planeta ou persigo-te já na cauda de um cometa?

14/11/2007

na boca

DeWeese Photographic Arts


embrulho-me em mim mesma como um gato na noite
não olho já em volta. estou cercada a frio e abandono
nada tem sequer a concisa dor do açoite
não me sobra ao menos o socorro do sono

lateja-me na cabeça o sangue, então há vida sim
não fora isso e não tinha a certeza de estar entre os demais
onde me abandonaram até que me esquecesse de mim?
não quero recordar. quero viver sem penas como os animais -

na boca da noite na boca do medo na boca da morte
na boca do grito na boca da fonte na boca do vento
na boca do fim na boca do riso na boca da sorte
na boca do sexo na boca sem nexo da boca do tempo.

13/11/2007

Hoje. O dia de Emília.

from Northern Images Photography


hoje o rio não é tortuoso. assim o quero

querer é poder. se exagero, exagero.

mas não me tirem um calmo rio de paz. por hoje, não!


amanhã tanto faz.

já estou acostumada ao torbilhão

mal sei viver sem ele, francamente.


mas hoje é urgente um rio manso digno de outra gente


daquela que tem ainda de acreditar

que é amada até por quem pensa que perdeu.


hoje é dia de ser amigo de quem

nos guarda o sono na distância

brinca connosco como se fosse infância

este absurdo acto de ter de envelhecer


hoje vento, não sopres tu o rio

deixa-o correr de mansinho até se pôr o sol

dá-lhe só uma brisa de carinho

até que a noite desça e o dia passe.


amanhã? amanhã estou de novo dentro de água

a nadar até que me canse

até que dance, se quiseres, a dança da morte

para apagar de vez a mágoa

a tal que hoje vou esquecer


dê lá por onde der !





12/11/2007

duas frases soltas do caderno

image by Janusz Miller

que importa que os lençóis sejam de linho se está desabitado um corpo de mulher?

pode ela seguir qual curso de água se na vida, como no inverno, não chover?

10/11/2007

cumpre a promessa, Homem

image by Miru Kim


desempenhei mais papéis do que a memória comportava.

desci túneis que não conhecia. tropecei e caí vez após vez

no escuro. no escorregadio da água pouco clara


a noite que vivemos tinha tão pouco riso. doía-me o silêncio

mais que os joelhos rasgados nas quedas de não saber viver a personagem

que a cada dia tinha de mudar para acertar o passo ao teu jeito de ser.


depois paraste. tinha de ser assim. sabias tu e eu. a vida tem limites

como a pele

não podemos esticá-la a infinito sem risco de romper


partiste madrugada. assim fazias quando tinhas pressa de chegar

não levaste bagagem e nem disseste nada. quando eu visse. veria

para quê incomodar?



surgiram mais papéis para decorar depois que descansaste

alguns eu mal sabia interpretar. cansei demais. veio a vontade de seguir-te

não podia. havia os "nossos putos" por criar, homem das águas


e lá segui meio a crianças e traições até que uma mulher me fez morrer

estou , entre papéis, amor, tu sabes. e já nem os papéis sei arrumar


Estou sentado num dancing e tenho a mão. Ainda em volta de uma bebida de pressão de ar.*



ann-hamilton-much-paper


dispara essa bebida e corre a ajudar. afinal era o que estava combinado

se houvesse um outro lado onde poisar.


* Nuno de Bragança in a Noite e o Riso



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este post vai ter de servir como resposta ao desafio do Espreitador. não passo a ninguém porque sou contra-correntes.

07/11/2007

aniversário

image by Part Gibson

juventude de querer matar a vida. não suicídio. a vida totalmente. não a pedi e deram-ma sem querer. não entendi. nunca hei-de entender. ser mãe tem de ser acto cúmplice entre quem concebe e quem está por nascer.

assim o foi comigo por três vezes. assim seria tivessem sido seis.

mas não nasci assim. olharam-me e pediram perdão por eu ser mulher. como se mais importante do que um filho, fosse o agrado ao marido que desejava um homem para lhe manter o nome à flor da Terra.

ele sorriu. contaram-me cem vezes e condenou-me à exclusão por dizer, o santo poeta - não faz mal, Maria , ela ainda é mais bonita que a primeira.

não era isso que ele queria dizer, mãe. não entendeste. queria só aliviar-te do desgosto de não ser eu o rapaz desejado. não era dizer mal da filha que criavas há mais de dois anos o que queria. que é isso de ser bonito, mãe? todos os meus filhos são os melhores do mundo. Mãe. entende agora. ainda é tempo!



image by karlc

por isso estatifiquei a correr para ti, pai. e hoje a dois dias da data que nunca celebro, arranco os pés do chão na esperança de chegar a tempo de te abraçar no dia exacto do meu aniversário.

aí pesca-se, pai? aí há circo e bola? e manifestações proibidas onde irmos escondidos para não ralar ninguém? aí há barbeiros que cortem o cabelo à la garçonne para voarmos de moto, a seguir, sem cabelo a estorvar?

mesmo que não haja nada disso, deixa-me ir abraçar-te pai. tenho tanta saudade de te sentir amar-me!

sabes pai, o mundo está doente e eu ando tão perdida no meio de toda a gente...

05/11/2007

intervalo até que chova

Friedensreich Hundertwasser


dentro da minha cabeça.


neologismos ou é só educação!



photo by Darlyne A. Murawski


dê lá por onde der (falta de imaginação ou de fortuna) a gente passa a maior parte do tempo útil de vida, onde trabalha. os que nunca pagaram nem pagarão impostos trataram de alongar-nos isso mais. não faz mal. até gosto do onde estou e de alguma da gente que há por lá. afinal já lá vão vinte anos de convivência, nalguns casos de amizade real.

mas isto vem a quê?

vem de um neologismo que aprendi outro dia à saída da consulta da médica (sim, que nós temos essa excelente coisa de não sermos obrigados a ir ao centro de saúde por consulta - ganhamos nós e os patrões, é óbvio).

é certo que na casa se praticam os aumentos tipo função pública, isso eu sabia já. o que ainda não sabia e, constatei, é que quem avaliava a necessidade ou não daquela medicida (que não é a de trabalho) era um técnico alheio à área da saúde. técnico cuja formação eu desconheço. mas lá que é técnico é. e pronto, a vida é assim mesmo. com jeito toda a gente sobe menos eu. não tenho jeito para essas coisas de subir.

já me alonguei demais. é assim em todo o lado. cada um tem o país que permitiu.

o que aprendi foi o verbo melgar.

no fim de várias consultas. a última foi a minha, sai um génio do seu gabinete e interpela a doutora:

"temos de conversar!" assim, sem mais aquelas, qual patrão a ameaçar processo.

os outros colegas a escutar e... eu. é só educação!

que não podia ser, demorar tanto tempo a atender "quem vem para aqui melgar" (sic) "ou se está doente precisa de ir a outro lado" (sic). e outros mimos de polidez e de responsabilidade.

a médica ainda balbuciou se deveria usar uma ampulheta para contar o tempo e despachar pessoal.

ele nem a ouviu. a bilis tinha-lhe subido à verve e melgou a senhora até se cansar.

se ali houvesse alguém cheio de saúde e respeito por si, adoecia só de o ouvir.
mas se a melga era eu, estive tão à beira da ferroada, que só a paciência que a idade me deu e, sobretudo ele estar fora do campo de visão, me impediram de lhe espetar o ferrão na língua mesmo.

deram-me as receitas carimbadas e voltei ao trabalho, mas a pensar.

- será que vamos imitar a função pública em tudo o que ela tem de pior e pôr a conduzir a arte de curar, gente que tudo o que sabe é usar calão e obedecer a his master's voice?

só os próximos capítulos o dirão.

mas pelo sim pelo não quando voltar à médica, levo o dum-dum, o tal que mata que se farta, porque para zumbidos daqueles o Raid casa e plantas já é completamente ineficaz.

image from nyholt

ou o ainda de melhor efeito - zaz!

02/11/2007

mas eu quis ser tanta coisa!

imagem de J.Roumagnac

falo sempre do que sei ou sou. não sei falar diferente.

mas há coisas que ficam pelo caminho por dizer. coisas da vida mas da outra gente

coisas que encontrei nas águas bem à tona. tão superficiais que nem a água as quis

serão profundas de outros? que sei eu?

se nem sei se as árvores quando morrem correm para o mar

ou se nasceram dele e lá regressam como a um berço antigo...


não sei nada. é por isso que só escrevo do que sei ou sou

daí o pouco encanto. daí a repetição inevitável.

se ao menos me atrevesse a escrever sobre tudo o que nunca fui

mas que quis ser.