image by Jody Fenton a arca muito velha não tem chave. como dantes quando Maria estava por aqui e a abria para buscar uma história ou um livro precioso para ela ou um brinquedo oferecido pelos filhos e subraído à voracidade da mãe, que sempre o exigia, coisas de avó a que ela acedia com sofrimento mas sempre na vontade de lhe conquistar o afecto. nada ganhou com isso. sei eu. sabemos muitos.
tropeço neles agora. barro. madeira. mãos de trabalho e carinho infantil estão lá espelhadas.
apesar do pavor que tinha de ver as suas"coisas" devassadas pelos corvos, não há trancas. só a chave da porta era fechada e assim continua.
pego os papéis e espalho-os no chão. sento-me à beira deles. não são muitos já. excepto os dois livros que como ela dizia, tinham passado o prazo de validade. num papel, tirado ao acaso, que eles nem data têm muitas vezes:
image by Jody Fenton
sofro às mãos de mim a minha história. escolhas são escolhas e eu escolhi este amor. mas não escolhi o aqui. o como. o onde. tudo o demais foi sendo acrescentado à minha juventude como se ser jovem significasse força sobre-humana.
todos dormem na casa gigante, excepto eu. e é assim quase todas as noites. levanto-me. visito o sono deles. acaricio os sonhos que desejo felizes. os dos filhos. sorrio de ver a mãe como uma pedra no fundo de um poço, com a respiração mais lenta que a de lagarto a hibernar. amanhã vai dizer, como quase todas as manhãs: " não dormi nada. os meninos deram uma noite terrível...". ladadínhas que já sei de cór. nunca respondo. não valeria a pena.
o marido? esse dorme o sono dos anti-depressivos, dos barbitúricos. da morte diária nessa hora e a ser adiada dia a dia. quanto tempo irá ele resistir? quanto tempo resistiremos todos? e os meninos, por quanto tempo mais lhes poderei esconder o pesadelo?
desci para buscar água. não tenho vontade de subir. que faço eu aqui? que faço eu da noite ? que faço eu do futuro? que futuro há por ver?