29/10/2007

adiante


Water_by_TheEveningStarLenore

embravecida a água salpica-me o rosto quente ainda de raivas que passaram pelos vasos sanguíneos a regar-me o cérebro. que bom!

que boa a água! que bom libertar raivas que marcaram por anos, o dia a dia que eu queria de paz! que bom distanciar-me agora disso tudo como nos separamos de tralha velha, a atrair traça no sótão lá de casa. tanto espaço nos sobra! era urgente fazê-lo mas teve de ficar sempre para amanhã.

teve de ser. não por feitio meu.

agora? agora o rio da vida corre quase como dantes. quase. que as águas nunca se movem para trás e ainda bem.


image by Ramūnas Danisevičius

salto do rio para o mar. voo de ave-gigante. com o corpo para a frente. liberta do passado. o futuro é adiante.

há deus ou há justiça! o nome tanto faz.

27/10/2007

filho, eis o teu pai.

image by Eric Boutillier Brown


vi-te enfrentar mares enfurecidos
como se a vida tivesse começado ali

querias um filho como quem quer o céu

e por ele deixaste o vício-morte
e por ele me amaste a cada canto
a cada hora fértil. como os animais
que são sábios a preservar a espécie

vi-te vê-lo chegar como rei orgulhoso
que pode dar ao povo o sucessor
como se fosse o teu filho primeiro

se pudesses tê-lo-ias parido
(isso se os homens suportassem a dor)

escrevo isto a rir como naquele instante
em que o ouvi chorar com um alívio enorme
ah como a dor já me estava distante !

homem do mar, por ele foste forte.
e eu voltei a ser o que nasci para ser
apenas mãe
esse nome carregado de vida. até à morte.

memórias que não pesam


um título. um poema, nos papéis de Maria. umas palavras antes.

image by Konrad Ciok

não me roubem as memórias por favor. não tenho rosto já. mas sei ainda muito bem quem sou. o de onde vim e o para onde vou.

o Estudante Alsaciano. decorei de rajada depois de querer entender palavra por palavra. nunca fui papagaio. disse-o muitas vezes. com raiva. quase a sentir o pai morto na guerra. sabia o que dizia e aonde ia. não me arrastaram a lado nenhum.

havia o Lenine, na Quinta da Lomba. tinha um pai enlouquecido pela pide e eram, claro, comunistas os dois.

enquanto a rapariga das tranças fingia gostar de bordar e escutava a mãe entre panelas e feijão verde, desvendávamos matas, o Lenine e eu.

- madalena, amanhã aquilo pode ser perigoso. não para vocês. mas para mim pode e muito. o teu pai quis que soubesses ao que ias ou não irias mesmo. tens a certeza que queres ir?

- é pela liberdade. quero e vou!

enquanto eu batia a mão no peito no final do poema, com a força de quem ama a terra onde nasceu, os homens batiam palmas. poucas mulheres mas também as havia. expressões duras.

lá em baixo, na cave, o Lenine português e os outros, corriam risco de ser presos. eu sabia. não depois. na hora. naquela hora. voltámos pelo esgoto abandonado desde o Lavradio até a casa. os homens murmuravam. estava escuro e eu tinha sono já.

algum tempo depois, o meu amigo foi preso. quis ver-me, na cadeia. vim a Lisboa com a mãe dele. à capital pela primeira vez e a visitar um preso. depois disso não o veria mais. tive pena. fazia muito bem pernas de rã que apanhávamos nos charcos.

teria ido viver para a Rússia foi o que constou nas bocas das mulheres. baixinho. na mercearia única (?) do bairro.

quando fui à Rússia pedi para o ver. sabiam dele sim mas... não o encontraram...

parti de lá com a certeza de que não há ditaduras diferentes. todas são más.

pobre rapaz condenado à nascença por um nome.


alsace-lorraine at media.tsmm.net

Antigamente, a escola era risonha e franca.
Do velho professor as cãs, a barba branca,
Infundiam respeito, impunham simpathia,
Modelando as feições do velho, que sorria
E era como criança em meio das crianças.
Como ao pombal correndo em bando as pombas mansas,
Corriam para a escola; e nem sequer assomo
De aversão ou desgosto, ao ir para ali como
Quem vai para uma festa.

Ao começar o estudo,
Eles, sem um pesar, abandonavam tudo,
E submissos, joviais, nos bancos em fileiras,
Iam todos sentar-se em frente das carteiras,
Atenta, gravemente — uns pequeninos sábios.
Uma frase a animar aquele bando imbele,
Ia ensinando a este, ia emendando áquele,
De manso, com carinho e paternal amor.

Por fim, tudo mudou.
Agora o professor,
Um grave pedagogo, é austero e conciso;
Nunca os lábios lhe abriu a sombra d’um sorriso
E aos pequenos mudou em calabouço a escola
Pobres aves, sem dó metidas na gaiola!
Lá dentro, hoje, o francês é lingua morta e muda:
Unicamente o alemão ali se fala e estuda,
São alemães o mestre, os livros e a lição;
A Alsácia é alemã; o povo é alemão.
Como na própria pátria é triste ser proscripto!

Frequentava também a escola um rapazito
De severo perfil, enérgico, expressivo,
Pálido, magro, o olhar inteligente e vivo
— Mas de íntima tristeza aquele olhar velado
Modesto no trajar, de luto carregado...
— Pela pátria talvez!
— Doze anos só teria.
O mestre, d’uma vez, chamou-o à geografia:
— "Dize-me cá, rapaz... Que é isso? estás de luto? Quem te morreu?"
— "Meu pai, no último reduto, Em defesa da pátria!"
— "Ah! sim, bem sei, adiante...
Tu tens assim um ar de ser bom estudante.
Quais são as principais nações da Europa? Vá!"
— "As principaes nações são... a França..."
— "Hein? que é lá?... Com que então, a primeira a França!
Bom começo! De todas as nações, pateta, que eu conheço,
Aquela que mais vale, a que domina o mundo,
Nas grandes conceções e no saber profundo,
Em riqueza e esplendor, nas letras e nas artes,
Que leva o seu domínio às mais remotas partes,
A mais nobre na paz, a mais forte na guerra,
D’onde irradia a ciência a iluminar a terra,
A maior, a mais bela, a que das mais desdenha,
Fica-o sabendo tu, rapaz, é a Alemanha!"

Ele sorriu com ar desprezador e altivo,
A cabeça agitou n’um gesto negativo,
E tornou com voz firme:
— "A França é a primeira!"
O mestre, furioso, ergue-se da cadeira,
Bate o pé, e uma praga enérgica lhe escapa.
— "Sabes onde está a França? Aponta-m’a no mapa!"
O aluno ergue-se então, os olhos fulgurantes,
O rosto afogueado; e enquanto os estudantes
Olham cheios de assombro aquele destemido,
Ante o mestre, nervoso, audaz e comovido,
Timido feito herói, pigmeu tornado atleta,
Desaperta, febril, a sua blusa preta,
E batendo no peito, impávida, a criança
Exclama: — "É aqui dentro! aqui é que está a França!"


Acácio Antunes

25/10/2007

confissão


image by Mark Townsend

devia haver entre nós olhar de pedra. devia haver e há. mas há também a água que surge aos olhos quando nos cruzamos e torna a pedra doce. coisa de rebuçado para criança. lá ficamos sem jeito. a inventar palavras para cobrir o tempo desse estar.

água a bater nas pedras. a amolecer as pedras que usamos como olhos ou pensamos usar. sabemos não poder olhar no fundo. lá para dentro é a alma. jogo das cinco pedrinhas. jogo de perder e de ganhar. já passámos por isso. conhecemos o risco de jogar. jogadores veteranos brincamos um com outro. provocação de infâncias tão passadas mas vivas como as cores do outono que esvoaçam à nossa volta já.

image by Moore Reef

acabou de chover. o ar está limpo. os olhos estão limpos mas olham em direcções diferentes e, se se cruzam, pregam-se logo ao chão. nenhum se quer mover dali e temos de. nenhum se quer calar pelo perigo disso e falamos de nada. por falar. rimos. temos de rir. ou caímos nos braços um do outro com o mundo a girar-nos em redor até nos despenharmos de vertigem na cama avermelhada do outono. mais quente ainda do que sol de agosto.

irra, confesso que seria um gosto!

24/10/2007

o medo e a ludoterapia

escritos não datados. como se a vida de Maria não tivesse sequência ou isso não lhe importasse para nada. por viver ser viver e nada mais. datas são referências para historiadores e ela como eu e a maioria de nós, não tem a veleidade de ficar na história.

image by Hugo Provoste

vivi medos de infância. incutidos. coisas de mãe a inculcar prudências até ao excesso disso. mas agora é real. vive-se o medo. o medo com maiúscula. o que tolhe. o que eles querem. o medo deles.
e eu que vivi medos pequenos como se fossem coisas de Adamastor. escolhi perder o medo. sim escolhi. afinal em nós tudo se controla.

quase perdi o primeiro filho em casa deles. dos senhores do poder-tudo-até-matar.

Era de noite e levaram
Era de noite e levaram
Quem nesta cama dormia
Nela dormia, nela dormia
Sua boca amordaçaram
Sua boca amordaçaram
Com panos de seda fria
De seda fria, de seda fria

Era de noite e roubaram
Era de noite e roubaram
O que na casa havia na casa havia, na casa havia
Só corpos negros ficaram
Só corpos negros ficaram
Dentro da casa vazia casa vazia, casa vazia

Rosa branca, rosa fria Rosa branca, rosa fria
Na boca da madrugada
Da madrugada, da madrugada
Hei-de plantar-te um dia
Hei-de plantar-te um dia
Sobre o meu peito queimada
Na madrugada, na madrugada

nunca esquecerei o bom que foi poder cantar isto. contralto que sou, de forma bem audível na hora de bater as barras. na hora do silêncio. ainda te agradeço daqui, Zeca, a companhia na solidão da cela.

foi tudo exactamente assim com excepção da mordaça real. mais a devassa. ninguém mais pode entrar na casa. destruiram tudo. comeram beberam (no pinhal do rei). roubaram-me os livros.

é verdade - o que não mata, fortalece. o meu filho a custo de injeções sobreviveu. faz agora ludoterapia. ontem já fez pipocas ao lume e ficou radiante por isso. pela segunda vez dizem que é sobredotado. a primeira foi aos dois anos e meio. pobre dele num país como o nosso. nem sei se lhe devo ou não falar do assunto se as coisas não mudarem por aqui.

nas horas de espera da consulta comecei a escrever um livro louco, porque o silêncio do meu homem já me pesa nos ombros mais que os três filhos às cavalitas. para camuflar chamei-lhe "Marta ou o Diário da minha enteada". é um livro de adolescentes para adolescentes. cheio de revolta verdadeira. a minha ludoterapia. afinal todos temos direito a um jogo de curar.

22/10/2007

no centro de mim

Grass by Norm La Coe


cansada de viver de encontro ao vento nos tempos que estes tempos me trouxeram

voei direita ao dia que fechava com a pressa de quem tem alguém à espera

a tropeçar nos pés da luta inglória de ter de contar histórias que não sou

à beira de ser morte cá por dentro com fúria de ciclone ainda por fora

à beira de ser vida violenta com a morte a querer fechar-me a última saída

à beira de... à beira de...


- que é que eu dizia? chegaste meu amor. respiro agora.

não não é vendaval, é maresia. não é morte nem vida é gargalhar!

o que parecia ser engolir vento era a força do teu respirar

a entrar em correria no meu centro.

20/10/2007

intervalo

image by emiotic

palavras-rio


down-the-river by Aaron Rayburn


descendo rios. saltando rio em rio

adormentei a dor das palavras guardadas

deitei sangue da alma. avermelhei a água

nada passa se não for resolvido

e as sangrias já estão ultrapassadas

na arte benfaseja de curar


vivi mares na idade dos lagos

mais tarde afundei poços. fui atirada lá

as palavras palpitavam-me as veias

não era dentro a mim o seu lugar

nem libertado o sangue elas saíam

colavam-se-me às células do cérebro


as palavras querem ser pronunciadas

alivio as que se libertaram

sofro as que insistem em não me abandonar

as palavras que a ti nunca direi

navegam rios comigo e alastrarão no mar

acabarão nas praias como história

como história. não como mais histórias

image by Santiago Caama



as palavras ganharam vida própria

são elas rios agora a transbordar.


animais de águas turvas

na rua havia sol. o café tinha de ser lá fora ela não o tomava e no quase vazio da casa não o vi. aliás prefiro bica.
fui ao café da esquina. falei dela. que não a têm visto. a senhora daqui só leva sumos e água das pedras, bolos só muito raramente - o dono - diz que o açucar ás vezes lhe faz falta e depois a enjoa - e lá se foi a atender cliente. pego à toa mais uma folha de caderno quadriculado A4. tanto se me dá a ordem dos dias desornedados que viveu. quero é ler.



no Verão há quase sempre um pouco mais de paz. pelo menos até hoje. com a filharada toda, os meus os teus e os nossos, a entrar e a sair na alegria da quinta ou nas idas para a praia, sem aquele casarão a promover distãncias, ele deixa o álcool-depressão e, nada sóis.

com a mãe ausente e a não poder augurar futuros abaixo de sinistros e os filhos a dormir o sono justo da correria à solta, sentados em volta da lareira apagada, claro, mas mesmo assim ainda aconchegante, surge o inesperado da boca do meu homem:
- hoje tive um convite mais que estranho, já lhe disse?
- não.
não fiz perguntas. com ele bastava sempre só esperar. não nos mentíamos. amantes, embriaguez, de tudo ele acabaria (e acabou) sempre por me falar. era o seu jeito de ser casado comigo.
- estava eu no emprego quando a sua irmã me ligou a propor um almoço em casa dela. fiquei quase de cócoras de pasmo, pois se aos dois juntos ela nunca convida... porquê agora consigo aqui na quinta?
que era para eu não me sentir sozinho apressou-se a dizer. não fosse ela um carro de assalto, como você lhe chama e eu pensaria que me queria...
- engatar? e porque não? você é meu, é célebre e tem nome sonante. além de ser um espanto de homem, mas isso não sei se cabe na avaliação dela. porque não?
- bem, ela é sua irmã...
- pois. cada um nasce com o seu calvário. oiça amor , ela é bicho que caça em águas pantanosas e nem que eu desgastasse a mente e espremesse as meninges até as rebentar a conseguiria entender mais do que já disse. deu-lhe corda quando ia lá a casa agora...

- que é que quer ela fazia-me rir e ... é sua irmã.

- também o Abel e Caim eram...

não pensei mais naquilo até lhe encontrar o caderno onde isto ficou escrito "por causa dos outros também"*. tínhamos muito amor à nossa espera durante o sono doce das crianças.
mais tarde apercebi-me dos riscos de menosprezar um animal de sangue frio. mas nunca é tarde demais senão depois da morte e mesmo assim, depois da morte, sei eu lá.



*José de Almada Negreiros

19/10/2007

milagre em Fátima...

- preciso ter uma Páscoa decente. sempre foi importante para mim esta data. vem comigo a Fátima? está lá o seu amigo padre e você até disse poemas. assim aproveito e oiço-a também.

- sim mas já estão gravados. Fátima não é bem a luz que me alumia, sabes isso.

- nem a mim. mas não voltei lá desde que ia passear a mãe a casa da Lúcia. assim aproveito e visito as antigas criadas. faço-as felizes.
dizer-lhe que não era difícil. ele precisava. tinha duas costelas partidas numa escorregadela de tapete, mas precisava conduzir até Fátima assim. estava um frio de rachar costelas sãs. nem um hotel marcado. nada. mas era preciso. assim, de véspera.

- bem, se precisa, vamos.

- não se você não quer.

ah, tanta educação às vezes dava vontade de explodir como naquele dia - podias ter começado por perguntar primeiro!

não explodi. afinal ele precisava. a minha missão com ele já era de serviço há muito tempo. coisa de mãe mais nova do que o filho, mas presente na hora.

image by BA Mark Mapa

dormida numa casa de freiras fria e árida. as dores nas vértebras cresceram. as velhas senhoras agradeceram-me tê-lo levado lá. obrigada. nunca pensámos ver de novo o nosso príncipe aqui. aos pés de nossa Senhora. a mãezinha dele deve estar tão feliz...

muitas orações, reuniões, meditações e vias-sacras depois, comigo a servir de voz na contemplação dos mistérios, lá nos arranjaram um quarto decente. estava exausta. bem precisava, agora eu, dormir. mas o corpo dele precisava do meu. estava eufórico. cortar-lhe a rara felicidade, esteve para mim fora de questão. na dúvida de ter esquecido a pílula tomei outra.

e nesse dia engravidei.

image by Marino Mannarini

quando se pede um milagre não se pode escolher qual. aprendi.

depois do choque incial pelo imprevisto (e foi bem grande). imaginei uma filha nascendo com uma pílula na mão a rir à gargalhada. a filha tenho-a. saudável. reguila. atrevida. peremptória no acto de nascer e de viver. a pílula deve tê-la perdido lá nos rios-misteriosos-regaços por onde navegou até a poder ver. eu ri.

mas a Fátima não penso voltar. não vá a santa, carregada de jóias, tecê-las outra vez.

*

ao acabar de ler isto apetece-me com urgência um café. imaginar Maria em Fátima é difícil. mas contado por ela ... tenho de acreditar.

18/10/2007

os papéis. o tesouro perdido por ali


    seguro os papéis de Maria como se fossem meus. talvez mais. ela não os relia. atirava-os para o canto até resolver guardá-los numa arca quando, numa mudança de casa, os encontrou. lembro de a ouvir exclamar ao ler um deles - isto é escrito por mim?

    soltava a escrita como soltava tudo. carregar com ela sempre só as pedras que fora acumulando. achadas em viagens, na rua ou compradas em feiras, as de cor.


    image by Dan

    ainda é no teu amor que sobrevivo

    ainda é nele que encontro paz

    meu amigo de sempre. meu abrigo

    tu pedrada no charco em que vivia

    tu vida já na morte

    tu ferida em mim aberta dia a dia

    tu angústia tu raiva tu sonho tu verdade!

    vem-me de ti a força para sorrir

    e pisar firme rumo a um qualquer norte.


    escolhas.


      image by Jody Fenton

      a arca muito velha não tem chave. como dantes quando Maria estava por aqui e a abria para buscar uma história ou um livro precioso para ela ou um brinquedo oferecido pelos filhos e subraído à voracidade da mãe, que sempre o exigia, coisas de avó a que ela acedia com sofrimento mas sempre na vontade de lhe conquistar o afecto. nada ganhou com isso. sei eu. sabemos muitos.

      tropeço neles agora. barro. madeira. mãos de trabalho e carinho infantil estão lá espelhadas.

      apesar do pavor que tinha de ver as suas"coisas" devassadas pelos corvos, não há trancas. só a chave da porta era fechada e assim continua.

      pego os papéis e espalho-os no chão. sento-me à beira deles. não são muitos já. excepto os dois livros que como ela dizia, tinham passado o prazo de validade. num papel, tirado ao acaso, que eles nem data têm muitas vezes:

      image by Jody Fenton

      sofro às mãos de mim a minha história. escolhas são escolhas e eu escolhi este amor. mas não escolhi o aqui. o como. o onde. tudo o demais foi sendo acrescentado à minha juventude como se ser jovem significasse força sobre-humana.

      todos dormem na casa gigante, excepto eu. e é assim quase todas as noites. levanto-me. visito o sono deles. acaricio os sonhos que desejo felizes. os dos filhos. sorrio de ver a mãe como uma pedra no fundo de um poço, com a respiração mais lenta que a de lagarto a hibernar. amanhã vai dizer, como quase todas as manhãs: " não dormi nada. os meninos deram uma noite terrível...". ladadínhas que já sei de cór. nunca respondo. não valeria a pena.

      o marido? esse dorme o sono dos anti-depressivos, dos barbitúricos. da morte diária nessa hora e a ser adiada dia a dia. quanto tempo irá ele resistir? quanto tempo resistiremos todos? e os meninos, por quanto tempo mais lhes poderei esconder o pesadelo?

      desci para buscar água. não tenho vontade de subir. que faço eu aqui? que faço eu da noite ? que faço eu do futuro? que futuro há por ver?

      16/10/2007

      vida de papel


        image by Januaz Miller



        tantas vezes perdida tantas vezes achada . como um papel que parece esconder-se baixo ao nosso olhar, mas sempre ali.

        sim duvidei. quando a arca que faltava não era para abrir. ainda não. era a mim que cabia. senti-me cansada como se tivesse sido eu a carregar o peso do silêncio tantos anos a fio.

        não. não duvidei dela. não me tinha falhado como amiga nunca. também nunca se impunha. sabíamos apenas que ela estaria lá. não era egoísmo. era assim que nós nos entendíamos todos até ela desaparecer.

        desapareceu porquê? até eu me perguntei às vezes. ela que tanto se lhe dava falar horas a fio como ficar a ouvir-nos desabafos de gente, sem hora de fechar.

        duvidei. não duvidei? já nem me entendo. seja o que for é hora de abrir a arca e de a reencontrar.

        rio. e a outra margem.


          image by Hedy Lamarre

          e o rio corre com a nossa vida dentro. como nos outros dias. corre e arrasta tudo no caudal. lava. liberta os depósitos que sujavam as margens.

          um rio tem duas margens - a nossa e a dos outros e ainda que vistas da distância pareçam semelhantes, nunca o são.

          mas interessa é o rio que corre. o rio que corro. o rio que corre em mim e me liberta e limpa de passados. o que importa é viver. não sem sofrer eu sei. a vida é isto: uma dose de amor, outra de dor. a vida é. e pronto.

          o rio segue.

          15/10/2007

          e aos 60 anos "ressuscitou"?!


            image by madalena pestana

            e ressuscitou!

            como quem nasceu para modelo. modelo de tudo. até de photoshop, ressuscitou para mentir de novo. para me usar a vida como sua. para ter notoridade. ele há notoridade maior que ressurgir da morte?

            o que a move? não sei. se calhar ao tempo do pai "poeta louco" já havia pilhas duracel e ainda não acabaram. se calhar o não ter tido nunca vida própria a obrigue a viver a vida alheia. se calhar o só ter tido um filho por cesariana a faça querer ter adoptado os meus.

            desta não, avozinha! desta chega! comigo não fizeste caridade. eu não sou uma das velhinhas ou crianças, tanto dá, que tu ajudaste a atravessar a rua. quando não o queriam fazer.
            os meus filhos pari-os e criei-os sem pai e desde cedo. não queres que conte mais, pois não ó velha tonta?

            sim, os mini-mercados faliram. mas quem sustentava as tuas férias de quinze ou vinte "católicos progressistas" ?- o mini-mercado do teu pai "poeta louco".
            a pide insultou-te assim tanto, como visitante? curioso. a mim que lá estive dentro não o fez. devias ser mesmo muito perigosa para terem tido medo de te prender!

            só li fragmentos desta vigésima quinta ou sexta entrevista (que náusea! que ridículo! se a lesse toda acabava a vomitar)

            se os casapianos, que eu muito respeito, como o meu pai me ensinou por ter sido um deles. a que chamava irmãos e levava para jantar o que encontrasse onde quer que fosse, aceitam que os representes. se os meus filhos apatetados com tanta "glória" da tia, te batem palmas, que te aproveite!

            cada qual tem o ídolo que merece.
            mas lá teres criado os meus filhos, Catalina Pestana- ESSA NÃO!

            fico por aqui porque sou contra a pedofilia. é que eu pari filhos e isso liga-nos para sempre. para a vida. quer tu queiras ou não.

            não a ti. a quem se atreve a parir em lugar de abortar e entende o que é uma criança ao vê-la dar o primeiro grito.

            o meu grito e último aviso é: - cala-te e não te atrevas a falar mais de mim. não te conheço há muito tempo já. e tu sabes bem isso. e o porquê!

            e há porquês piores. que nem tu calculas que também já sei.

            11/10/2007

            amando a vida.


              image by Geoffroy Demarquet

              reergo-me.

              tem de ser hoje ainda. não há tempo que pare e nada vale o absurdo de o perder.

              a caminho do rio, manhã escura ainda, pergunto-me onde foi que me afastei da linguagem que encontro quando saio da água e subo a margem até à voz dos outros. pergunto pelo método de perguntar. não que me interesse já o onde, o quando. sei que é bom que tenha acontecido.

              volto de cabeça cansada de os ouvir. que loucos são tão cheios de certezas!

              - não há nada de certo além da morte.

              grito com as mãos em concha para o leito do rio que me conhece. oiço-lhe o murmurar aquiescente. sabe bem.
              ainda que muitos reconheçam no meu grito uma verdade (para alguns parcial), seguem na vida como se o não fosse. estômagos cheios de certezas. ganham diabetes de tanta adocicada certeza para não pegar a vida pelos cornos.

              sacudo os cabelos a atirar fora os restos que trouxe da viagem-pesadelo à vida deles. vejo cair o lodo que se lhes prendera. sorrio. aliás hoje já despertara a sorrir, mas vieram mais vozes distorcidas a querer puxar-me lá para trás, para a morte triste. a morte dos sonâmbulos.

              dou um salto e mergulho. que bom a água fresca a colar-me ao corpo os trapos que ainda não tirei. porque não se pode falar nú com essa gente. não se pode sequer ser. não se pode. não se. não.

              amor, voltei!

              últimas lágrimas


                image by madalena pestana

                hoje o sol luz maior. abre-se em cor a vida. soltam-se folhas vermelhas das paredes como lágrimas guardadas , em sangue, na memória dos astros. lágrimas tornadas sal pedra nos olhos doridos de as suster. vejo-as cair com o alívio bom de quem vê chover depois da seca. correm livres. há lá maior bênção que a liberdade? de chorar também.

                a terra, até agora um planeta frio, quase lunar, volta a azular com a distância dele.

                distanciei-me. tão definitivamente quanto posso. desencantos já os tive demais. já chega, vida!

                deixo cair das mãos, por entre os dedos, o que já não tinha há muito tempo. (ah, como a lucidez é um fardo tão grande!)

                já não pode haver ameaças de abandono quando o abandono me tem sido total. nada a perder quando se perdeu tudo.

                como uma árvore despida após o outono acaba por cobrir-se se não morrer no inverno, o mesmo terá de acontecer comigo. é só preciso que caiam as últimas folhas (ou lágrimas?) aos pés de mim para me fertilizar.

                *

                a ti, meu filho de olhos claros, que posso ainda dar para te mostrar a limpidez de um dia após a chuva, se te sujaram já a noção da água pura?

                fica a esperança de que haja ressurreição depois da morte que o inverno traz.

                olho daqui a luz outonal por sobre o rio. tão mansa que dá vontade de acreditar que a vida vale a pena. até para mim.

                para ti, tem de valer!


                10/10/2007

                por causa de uma notícia de jornal (ou será de uma foto?)


                  image by Madalena Pestana


                  olhando nessa direcção hoje sinto o que não é meu de sentir. de novo.

                  tudo parecia já adormecido. nem falara dos corvos, vê lá tu. interrompi blog após blog quando o pensamento se virava para ti. fugi vezes sem conta de fazer o que era inevitável desde há anos: matar-te!

                  deixei até de conduzir quando a tentação que tive ao ver-te uma vez num cruzamento, me fez carregar no acelerador. não tive dúvida aquilo nao tinha outro nome, era ódio. louco, desvairado, incontrolável já.

                  não quis ser eu a mão. não quis ser eu a arma. e nem te dei o luxo de ser eu a voz. tu havias de fazê-lo por mim.

                  quase morri da espera. nem gritar eu gritei. ninguém me ouviu. sobretudo não tu. a ti fui vigiando os passos, hora a hora mais previsíveis. oh, como eu te conheço!

                  e ontem quando, já distraída, mal te sabia ainda a existir atiram-me o teu lixo para o colo. a náusea recrudesceu mas nem aí gritei.

                  silêncio. o silêncio é uma arte que nunca cultivaste. desconheces-lhe o som. mas soa tanto e alto!

                  mais alto que os verbos que conheces: vencer. exibir. espezinhar. bajular. os verbos com que se ganha a vida muita vez...

                  mas hoje alguém gritou. um grito saudável que (sem que o saibas ainda) furou, com o som estridente, o balão que tu és. eu respirei. de alívio por não ter sido meu o grito contra ti. de alívio porque houve o grito. de alívio porque acabaste de morrer e vais continuar a arrastar a vida por aí convencida de que vives e não há salvação para o mundo sem ti.

                  a deus.

                  RIP.

                  uma pedra no caminho


                    image by A.K. Sircar


                    há uma pedra no caminho das águas.

                    uma pedra que o tempo não desgasta ou pouco o faz.

                    uma pedra que tenta impedir o rio de seguir o seu curso

                    uma pedra.

                    uma pedra negra de mentira negra-grande

                    uma pedra no meio de águas claras.


                    era urgente remover a pedra.

                    eu podia fazê-lo. até eu podia atirar para o infinito a pedra

                    a pedra da mentira. a pedra negra.

                    mas não se deve alterar o futuro. não se deve mexer na criação

                    e aquela pedra foi ali posta por algum motivo

                    tem uma função única na terra (como tudo tem).


                    a pedra da mentira nunca impedirá o rio de correr

                    ele contorna-a e segue até à foz de si sem medo da mentira

                    a mentira está lá para se distinguir da clara verdade da água.

                    08/10/2007

                    era uma vez um burro...


                      image by Andreas Heumann


                      era uma vez um burro que não queria ser burro. era uma vez muitos burros cansados de ser burros. era uma vez.

                      o burro foi subindo devagar. devagar e a coice. subiu a um montículo de terra e chamou-lhe montanha. sinal de que já comandava o mundo à sua volta. o burro tinha o poder de nomear.

                      os burros mais chegados não cabiam todos no outeiro pequeno. ficaram em volta a bater com os cascos. aplaudiam. é assim que se aplaude no reino dos burros - pateando.

                      o burro primeiro, a chegar ao topo, mandou-os aprender a levantar as patas de cima e a aplaudir com os cascos da frente. aprenderam. o burro tinha o poder de se fazer obedecer.



                      image by SilvesterCat

                      alguns burros mais antigos corriam o risco de ser presos em manjedouras comuns a vários. o burro devia-lhes favores. tinham-no ajudado a subir. tinham-no empurrado até ali acima. até ao verbo poder. o burro ditou (não sabia escrever) uma lei que aliviasse as penas.

                      depois, olhou à volta para os pobres burros-pobres e pensou: "se continuam confortáveis não me distingo deles a não ser pela marca da roupa e olha lá...". foi então que decidiu tratar-lhes da saúde, da educação e atirar-lhes para o lombo uma carga de impostos. burro é animal de carga, afinal. o burro ditava leis.

                      o burro dita leis.

                      o burro subiu a um montículo e por isso tem o poder de governar.

                      era uma vez um burro...

                      (ainda bem que o miúdo adormeceu. esta história ainda vai a meio de terminar...)

                      05/10/2007

                      beijo frio


                        image by christian coigny


                        aprendi-os ao espelho, os beijos que te dei.

                        coisas de solidão. puritanismos de outros. timidez.

                        que desejava eu na hora de brincar boca com espelho? - a ti.

                        a ti parecia tudo dirigido. conceberam-me sem saber, para ti.


                        e agora? agora que o tempo me gastou a lisura da boca

                        e a esperança de vida sendo muita, me é pouca

                        e não há lábios espelhados e nem espera a vencer

                        que faço agora, diz, ao teu sabor ausente?


                        não me sei viva ou morta - sei-me história

                        qualquer coisa passada sem futuro e olho-me

                        como se me visse distante, desdobrada

                        uma outra eu, lá do cimo de um muro


                        agora, penso sem saber para quê

                        recordo, amo anseio sem saber a quem

                        coisa patética de quem por nada, sente

                        não me sei viva nem morta e, sei-me gente?



                        04/10/2007

                        dói-me o mar


                          image by taxidriver



                          desaguados os rios no que parece um lago


                          é quase a hora de se esconder o sol


                          tudo se reflecte nesse instante. em mim


                          não sou mar. nem riacho afinal


                          nada mais que água. gota de água


                          mas tudo se reflecte. tão cá dentro!




                          a tua ausência...


                          dessa não falarei que quero sonhar.


                          a tua ausência...


                          essa não se pode reflectir nos meus olhos


                          de espera.


                          a tua ausência


                          dói não sei bem onde. no lago-mar


                          nos rios dormentes. cansados de correr.


                          ou onde o sol sem me contar


                          se esconde.




                          02/10/2007

                          sonho. pois.


                          image by seankinney

                          a porta que fechaste abri-a eu com a imaginação. não para escutar ou ver fosse o que fosse para o dentro da história que não era a minha nem será. pouco me importava na altura se era do futuro que se tratava ali...

                          só vi a tua mão estentida e quis prendê-la. o meu nome. essa voz. a tua voz! e o mundo estremeceu. que queres que faça?

                          mas a porta fechou-se e eu não resisti - atirei-me a ela com a força do sonho e projeitei-a escancarada para bem fora dali. fi-la soltar dos gonzos. todo o mundo se nos abriu num ápice e fomos agarrar a tempestede os dois. lá fora. abraçados. recordas?


                          e o encantamento (adormecido à força) despertou. desta vez o beijo foi tão lento que as bocas se fundiram de calor.


                          image by SilvesterCat


                          cresceu a tempestade. nós ficámos. nem a água que transbordou dos rios e inundou as ruas da cidade apagou a nossa felicidade da calçada


                          na nossa dança à chuva, sem descolar os lábios, fomos a juventude que não há.


                          não será o pesadelo de acordar ou o mundo a cercar-me a apagar de novo o teu sabor da minha boca.


                          grande o momento em que fechaste a porta.


                          meu amor, que beleza tem o poder de sonhar!


                          01/10/2007

                          - mas...

                          Image by Rolf Hicker

                          -senti a tua falta nessa noite como um deserto frio branco.

                          - mas tu é que não foste . eu estive lá.

                          conversa que não houve. deserto com sentido. mas senti-te a falta como se fosses meu e me faltasses. tinha-te olhado os olhos - estavam tristes e eu nem podia perguntar porquê...

                          vénias de circunstância essas de fingirmos não pensar nos outros. ó deuses que elegante isso é!

                          e teria de ser a noite toda assim. o olhar desviado. o tropeçar inevitável. os sentidos todos em alerta máximo. e gente. muita gente. gente a mais com mil olhos por cada.

                          - por isso é que não fui.

                          - não foi o que disseste...

                          - e podia eu dizer porquê? e a quem se nem sequer a ti?

                          - a mim podias mas...

                          - mas... que se dane tudo! por isso é que não fui. não sou de mas.

                          pensava isto aconchegada no sofá. a cadela já tinha adormecido. é a minha hora de pensar. e desta vez voltaste. nessa hora. tu e o deserto de não estares ali. ou eu contigo. ou...

                          deserto branco. frio. porta aberta ao vento que regela.

                          mas...

                          hei-de voltar a ver-te. isso aquece-me um pouco enquanto escrevo palavras que nem eu quero entender.

                          - que tinhas nesse dia? porquê o olhar triste? diz!