um título. um poema, nos papéis de Maria. umas palavras antes.

não me roubem as memórias por favor. não tenho rosto já. mas sei ainda muito bem quem sou. o de onde vim e o para onde vou.
o Estudante Alsaciano. decorei de rajada depois de querer entender palavra por palavra. nunca fui papagaio. disse-o muitas vezes. com raiva. quase a sentir o pai morto na guerra. sabia o que dizia e aonde ia. não me arrastaram a lado nenhum.
havia o Lenine, na Quinta da Lomba. tinha um pai enlouquecido pela pide e eram, claro, comunistas os dois.
enquanto a rapariga das tranças fingia gostar de bordar e escutava a mãe entre panelas e feijão verde, desvendávamos matas, o Lenine e eu.
- madalena, amanhã aquilo pode ser perigoso. não para vocês. mas para mim pode e muito. o teu pai quis que soubesses ao que ias ou não irias mesmo. tens a certeza que queres ir?
- é pela liberdade. quero e vou!
enquanto eu batia a mão no peito no final do poema, com a força de quem ama a terra onde nasceu, os homens batiam palmas. poucas mulheres mas também as havia. expressões duras.
lá em baixo, na cave, o Lenine português e os outros, corriam risco de ser presos. eu sabia. não depois. na hora. naquela hora. voltámos pelo esgoto abandonado desde o Lavradio até a casa. os homens murmuravam. estava escuro e eu tinha sono já.
algum tempo depois, o meu amigo foi preso. quis ver-me, na cadeia. vim a Lisboa com a mãe dele. à capital pela primeira vez e a visitar um preso. depois disso não o veria mais. tive pena. fazia muito bem pernas de rã que apanhávamos nos charcos.
teria ido viver para a Rússia foi o que constou nas bocas das mulheres. baixinho. na mercearia única (?) do bairro.
quando fui à Rússia pedi para o ver. sabiam dele sim mas... não o encontraram...
parti de lá com a certeza de que não há ditaduras diferentes. todas são más.
pobre rapaz condenado à nascença por um nome.

Antigamente, a escola era risonha e franca.
Do velho professor as cãs, a barba branca,
Infundiam respeito, impunham simpathia,
Modelando as feições do velho, que sorria
E era como criança em meio das crianças.
Como ao pombal correndo em bando as pombas mansas,
Corriam para a escola; e nem sequer assomo
De aversão ou desgosto, ao ir para ali como
Quem vai para uma festa.
Ao começar o estudo,
Eles, sem um pesar, abandonavam tudo,
E submissos, joviais, nos bancos em fileiras,
Iam todos sentar-se em frente das carteiras,
Atenta, gravemente — uns pequeninos sábios.
Uma frase a animar aquele bando imbele,
Ia ensinando a este, ia emendando áquele,
De manso, com carinho e paternal amor.
Por fim, tudo mudou.
Agora o professor,
Um grave pedagogo, é austero e conciso;
Nunca os lábios lhe abriu a sombra d’um sorriso
E aos pequenos mudou em calabouço a escola
Pobres aves, sem dó metidas na gaiola!
Lá dentro, hoje, o francês é lingua morta e muda:
Unicamente o alemão ali se fala e estuda,
São alemães o mestre, os livros e a lição;
A Alsácia é alemã; o povo é alemão.
Como na própria pátria é triste ser proscripto!
Frequentava também a escola um rapazito
De severo perfil, enérgico, expressivo,
Pálido, magro, o olhar inteligente e vivo
— Mas de íntima tristeza aquele olhar velado
Modesto no trajar, de luto carregado...
— Pela pátria talvez!
— Doze anos só teria.
O mestre, d’uma vez, chamou-o à geografia:
— "Dize-me cá, rapaz... Que é isso? estás de luto? Quem te morreu?"
— "Meu pai, no último reduto, Em defesa da pátria!"
— "Ah! sim, bem sei, adiante...
Tu tens assim um ar de ser bom estudante.
Quais são as principais nações da Europa? Vá!"
— "As principaes nações são... a França..."
— "Hein? que é lá?... Com que então, a primeira a França!
Bom começo! De todas as nações, pateta, que eu conheço,
Aquela que mais vale, a que domina o mundo,
Nas grandes conceções e no saber profundo,
Em riqueza e esplendor, nas letras e nas artes,
Que leva o seu domínio às mais remotas partes,
A mais nobre na paz, a mais forte na guerra,
D’onde irradia a ciência a iluminar a terra,
A maior, a mais bela, a que das mais desdenha,
Fica-o sabendo tu, rapaz, é a Alemanha!"
Ele sorriu com ar desprezador e altivo,
A cabeça agitou n’um gesto negativo,
E tornou com voz firme:
— "A França é a primeira!"
O mestre, furioso, ergue-se da cadeira,
Bate o pé, e uma praga enérgica lhe escapa.
— "Sabes onde está a França? Aponta-m’a no mapa!"
O aluno ergue-se então, os olhos fulgurantes,
O rosto afogueado; e enquanto os estudantes
Olham cheios de assombro aquele destemido,
Ante o mestre, nervoso, audaz e comovido,
Timido feito herói, pigmeu tornado atleta,
Desaperta, febril, a sua blusa preta,
E batendo no peito, impávida, a criança
Exclama: — "É aqui dentro! aqui é que está a França!"
Acácio Antunes
4 comentários:
Querida Madalena, como eu gosto de te ler....
Passa pelo meu blog "aramis-cavalgada" pois tens lá uma coisa para ti.
Beijos mil e bom fim de semana
Obrigada Aramis, estes textos menos atraentes só são publicados para que não haja mais plágios de vida, nos jornais. Obrigada pelas fotos no teu canto. :) Bj
gostei de conhecer mais um pedaço dessa trajetória, caminhos trilhados pela liberdade.
o poema é muito bonito, em especial sendo ouvido.tocou-me.
obrigada.
beijos
della-porther
Olá Della. Já ouviste o poema? Não sabia que também era conhecido no Brasil.
Obrigada Menina. Bj
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