20/10/2007

animais de águas turvas

na rua havia sol. o café tinha de ser lá fora ela não o tomava e no quase vazio da casa não o vi. aliás prefiro bica.
fui ao café da esquina. falei dela. que não a têm visto. a senhora daqui só leva sumos e água das pedras, bolos só muito raramente - o dono - diz que o açucar ás vezes lhe faz falta e depois a enjoa - e lá se foi a atender cliente. pego à toa mais uma folha de caderno quadriculado A4. tanto se me dá a ordem dos dias desornedados que viveu. quero é ler.



no Verão há quase sempre um pouco mais de paz. pelo menos até hoje. com a filharada toda, os meus os teus e os nossos, a entrar e a sair na alegria da quinta ou nas idas para a praia, sem aquele casarão a promover distãncias, ele deixa o álcool-depressão e, nada sóis.

com a mãe ausente e a não poder augurar futuros abaixo de sinistros e os filhos a dormir o sono justo da correria à solta, sentados em volta da lareira apagada, claro, mas mesmo assim ainda aconchegante, surge o inesperado da boca do meu homem:
- hoje tive um convite mais que estranho, já lhe disse?
- não.
não fiz perguntas. com ele bastava sempre só esperar. não nos mentíamos. amantes, embriaguez, de tudo ele acabaria (e acabou) sempre por me falar. era o seu jeito de ser casado comigo.
- estava eu no emprego quando a sua irmã me ligou a propor um almoço em casa dela. fiquei quase de cócoras de pasmo, pois se aos dois juntos ela nunca convida... porquê agora consigo aqui na quinta?
que era para eu não me sentir sozinho apressou-se a dizer. não fosse ela um carro de assalto, como você lhe chama e eu pensaria que me queria...
- engatar? e porque não? você é meu, é célebre e tem nome sonante. além de ser um espanto de homem, mas isso não sei se cabe na avaliação dela. porque não?
- bem, ela é sua irmã...
- pois. cada um nasce com o seu calvário. oiça amor , ela é bicho que caça em águas pantanosas e nem que eu desgastasse a mente e espremesse as meninges até as rebentar a conseguiria entender mais do que já disse. deu-lhe corda quando ia lá a casa agora...

- que é que quer ela fazia-me rir e ... é sua irmã.

- também o Abel e Caim eram...

não pensei mais naquilo até lhe encontrar o caderno onde isto ficou escrito "por causa dos outros também"*. tínhamos muito amor à nossa espera durante o sono doce das crianças.
mais tarde apercebi-me dos riscos de menosprezar um animal de sangue frio. mas nunca é tarde demais senão depois da morte e mesmo assim, depois da morte, sei eu lá.



*José de Almada Negreiros

2 comentários:

della-porther disse...

paper

o que li, deixou-me sem palavras.

um beijo
minha amiga

della

Madalena disse...

Della, não foi ao acaso que parei o Vida de Papel na fase ainda bonita.

Não te preocupes ( tu ou seja quem for) a comentar.

As palavras saiem agora porque têm de sair agora. Não busco apoio ou aceitação.

Beijo amigo.:)